08/05/2020

Página 17 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone

Retorno à minha casa após realizar o solitário enterro de Alice. Nenhum amigo ou parente presente.

Permaneço imóvel na soleira da porta tentando encontrar forças para entrar. A solidão e meus pensamentos são os únicos companheiros. As minhas mãos trêmulas dificultam a abertura da porta. 

Estou no meu meu deserto particular. Ninguém me espera atrás da porta. O espelho empoeirado na parede reflete de forma difusa o meu rosto. Meus olhos brilham e as lágrimas rolam pelos sulcos de minha pele flácida. As olheiras acentuadas revelam meu cansaço e desvio o olhar para não prolongar a minha auto-piedade. Fecho a porta da sala e desloco-me à cozinha para lavar as louças que ficaram na pia. As xícaras sujas de café sobre a mesa desarrumada foram as últimas testemunhas de Alice. 

Sigo para o silêncio do quarto observando cada objeto. Em cima do criado mudo de Alice, o abajur ligado denunciava nossa saída súbita na noite anterior. Sobre o outro criado, um livro de Dante Alighieri, um copo d’água e um frasco de Rivotril. Ao lado da cama, uma estante suporta uma coleção de livros, meus amigos mortos que ainda sussurram e fazem companhia. A cama desarrumada ainda preserva as marcas de seu corpo sobre o colchão. Deito meu corpo fatigado mas não consigo adormecer. Reluto em tomar aquele medicamento que dá acesso a uma estadia provisória no vale das sombras. Acompanho o movimento contínuo das pinhas do relógio cuco, enquanto o sono não me alcança. Estico a mão até a estante e pego o livro de Dante enquanto o sono não me visita. É uma versão adaptada em prosa da obra prima “A Divina Comédia”. Logo na primeira página uma frase de impacto: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Parece até que essa frase foi escrita para mim.

No estado em que me encontro, procrastino essa leitura para um momento mais apropriado e deixo o livro em cima do criado. Sem alternativa e ansioso para adormecer, tomo 10 gotas daquele sonífero, cerro meus olhos e mergulho profundamente no sono. 

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