08/05/2020
Página 01 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Introdução
Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Outras lembranças, ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembranças em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um considerável número dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.
Fiódor Dostoiéviski
Página 02 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Meus raros leitores, eu me chamo Zara Crotone e aproximo dos 70 anos. Não quero ser exemplo de nada e nem peço a sua compaixão pela minha idade. Preciso contar urgente minha história e meus segredos, antes do meu retorno implacável ao grande nada. Meu prazo de validade está chegando ao fim, como tudo que nasce, cresce e desaparece na natureza. Com o decorrer dos anos, somos esquecidos ainda em vida de forma lenta e gradual. Primeiro pelas pessoas que não obtêm mais nenhuma vantagem com nossa existência, depois por aqueles que de alguma forma ajudamos, em seguida pelas amizades circunstanciais e por último por aqueles que amamos. Não necessariamente nessa ordem.
Daqui a duas gerações ninguém mais saberá o que signifiquei e realizei enquanto respirei. Mas isso também não terá importância alguma. Fui apenas mais um ser pensante, finito e útil por algum tempo.
Talvez algum descendente ou estranho encontre minha última fotografia esquecida no meio dos documentos da família, no fundo de uma gaveta. Quem sabe até perca preciosos segundos repousando os olhos sobre aquela fisionomia desconhecida, impressa em papel amarelado pela ação do tempo. E isso também não será importante.
E provavelmente, essa pessoa, num gesto desinteressado, descartará esse papel insignificante na lata de lixo e assim consolidar definitivamente a extinção de minha última imagem. Nada disso também terá importância.
Para me confortar, penso, enquanto existo, nas palavras de Epicuro:
“O mais terrível dos males, a morte, nada representa para nós, pois enquanto estamos vivos a morte não existe e quando a morte acontece nós deixamos de existir”
Diante desse quadro pintado com tintas cinzentas, só me resta dedicar a minha vida aos poucos que me toleraram ao segundo verme que roer as frias carnes do meu cadáver, pois o primeiro foi inesquecivelmente dedicado à Bras Cubas, de Machado de Assis.
E já que citei um escritor brasileiro eu não poderia deixar de mencionar Fiódor Dostoiéviski, em seu romance “Memórias do Subsolo” onde ele disse que algum segredo da vida de um homem perece junto dele, porém, contrariando o mestre da literatura russa, pretendo perecer sem os meus e compartilhar com vocês a história da minha vida.
Página 03 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
A ambulância e sua sirene estridente interrompem o silêncio da noite escura e avançam em alta velocidade com destino ao Hospital Santa Ágata.
Sigo afundado no banco carona do condutor com as pupilas dilatadas e o coração disparado, pressionando o meu pé involuntariamente contra o fundo do veículo, como se fosse um acelerador imaginário. O vento invade agressivamente as janelas e quase me tira o fôlego. A iluminação frenética do giroflex rodopiando seus raios ofuscantes na rodovia, transforma a corrida em um espetáculo angustiante e depressivo.
Alice, minha esposa, encontra-se desmaiada e sendo transportada na traseira da ambulância, ao hospital mais próximo de nossa casa. Ela sentiu uma dor aguda no peito e foi foi reanimada a tempo com a chegada imediata da equipe de socorro.
Chegamos às 23:00h no portão principal da emergência do hospital particular, exatamente oito minutos após o seu desmaio. O condutor do veículo entra de ré, com as sirenes desligadas e estaciona próximo à porta de emergência. Salto da cabine segurando a maçaneta, com muita dificuldade e finalmente apoio meu peso no chão, reencontrando meu equilíbrio. Passo a mão no rosto para limpar a poeira da viagem e sinto minha pele fria como de um cadáver. Por pouco quase necessito de uma maca para receber cuidados ou ser notícia da seção necrológica do jornal da cidade.
Enfermeiros ágeis abrem a porta traseira, deslizam a maca com diligência e transporta Alice pelo corredor até desaparecer completamente. Imediatamente um funcionário uniformizado orienta direcionar-me à recepção para aguardar o atendimento.
Entro na sala ampla, asséptica e refrigerada. Na parede, um quadro branco revela o rosto de uma enfermeira linda, sorrindo com os olhos e o dedo indicador tocando suavemente seus lábios pedindo silêncio.
Procuro acomodar-me no confortável sofá duplamente preocupado. Primeiro pelo estado de saúde de Alice e depois por...
Bem! Não quero pensar sobe isso agora... – desviei o pensamento
Espero que Alice se recupere o mais breve possível e possamos voltar para a nossa casa. – pensei.
Enquanto isso, o segurança do hospital estica o braço em direção ao balcão para preenchimento da ficha cadastral. E essa é justamente a minha segunda preocupação!
Obedeço a orientação recebida e me dirijo até a cadeira em frente ao balcão. Comunico que estou acompanhando a minha esposa que acabara de entrar na emergência do hospital.
Página 04 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Uma recepcionista com rosto andrógino, mãos compridas e olhar imponente, dispara a primeira pergunta de forma robotizada:
- Boa noite senhor! Para que possa ser atendido com todo o conforto e eficiência no Hospital Santa Ágata, necessito que me forneça, por gentileza, seus dados para iniciarmos o cadastro.
- É a primeira consulta, senhor? – emendou.
- Sim. É a primeira vez que entro aqui. - respondi
- E qual o seu nome e data de nascimento? – disse olhando para o monitor
- Eu me chamo Zara Crotone e nasci em 15/10/1944
- E o nome de sua esposa e data de nascimento? – pergunta logo após digitar.
- Alice Salomé em 12/02/1949. - respondi
- Muito bem, agora necessito que o senhor me forneça o cartão do convênio da paciente.
Fiquei embaraçado e em silêncio por alguns instantes olhando para o chão na tentativa de buscar uma resposta, mas não sabia o que falar.
- Senhor! Eu preciso do cartão do convênio. Poderia me passar por gentileza? – Perguntou novamente, demonstrando impaciência.
Suspirei, aproximei-me do seu rosto e respondi bem baixinho para que as outras pessoas presentes não ouvissem:
- Lamento informar senhorita, mas infelizmente não temos plano de saúde.
- O SENHOR NÃO POSSUI CONVÊNIO? – pergunta a moça num tom alto o suficiente para a sala inteira ouvir.
Olho em volta e percebo todos os olhares em minha direção. Fico envergonhado e novamente me aproximo e quase sussurro:
- Infelizmente não tenho condições de pagar um plano de saúde na minha idade, mas se...
– mal terminei a frase e fui interrompido.
- Neste caso senhor – ela fala alto novamente - necessitaremos de uma folha de cheque assinada para continuarmos com os procedimentos. O senhor é correntista de qual banco?
- Infelizmente, há muito tempo não possuo talão de cheques. Sou aposentado e recebo minha renda através da conta salário – respondi.
- Neste caso senhor, não será possível a internação da paciente. O senhor possui algum filho ou parente que possa garantir os recursos necessários? Se precisar, pode usar este telefone. – apontou gentilmente o telefone que estava do seu lado, demonstrando solidariedade.
Página 05 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
- Infelizmente não temos filhos, senhorita. Tenho apenas a minha casa e uma coleção de livros. Sou um homem de poucos recursos, mas dou minha palavra que consigo dinheiro emprestado para pagar as despesas.
- O senhor não compreendeu! Nosso hospital não trabalha dessa forma. Precisamos de uma garantia.
O senhor tem que entender que possuímos os melhores médicos da região e isso requer recursos financeiros! Sinto muito, mas não podemos prosseguir com a internação. Neste caso, entraremos em contato com a rede pública e providenciaremos a transferência da paciente. – Disparou sem nenhum sentimento humanitário, quase perdendo o fôlego.
- Mas, senhorita! Receio que minha esposa não consiga chegar de forma segura à outro hospital. Por favor, converse com o responsável para deixar ela ser atendida e depois encontramos uma solução. Eu não me recuso a pagar. Sou honesto e trabalhei a vida inteira! Posso conseguir um empréstimo bancário para aposentados, trabalhar aqui ou até mesmo vender a minha casa, se necessário – Falei meio no desespero.
- Senhor, aguarde naquele sofá por favor. Levarei o seu caso à nossa supervisão e assim que possível lhe informarei o que pode ser feito – disse de forma seca para encerrar o assunto.
Imediatamente essa recepcionista andrógina desviou o seu olhar para uma senhora - que me observava com cara de reprovação - e convidou-a para sentar-se à sua frente, com um sorriso forçado, tentando demonstrar simpatia.
- Boa noite senhora! ... disse ela de forma mecanizada mostrando seus dentes.
Retorno imediatamente ao sofá, sentindo-me como um cão vira-lata sem dono, abandonado à própria sorte no final da vida.
Senhor, senhor, senhora... Palavrinha que mantêm a distância, disfarçada de respeito. – pensei!
Minha coluna dói e meu relógio de bolso indica que já chegamos no hospital a mais de uma hora.
Minha intenção não era burlar o hospital. No desespero de ser atendido rápido, não falei ao paramédico, no momento da aplicação dos primeiros socorros, que não possuímos plano de saúde!
Caminho vagarosamente até a porta vai-e-vem e vejo uma maca no final do corredor com uma pessoa em cima, mas pela distância, não consigo identificar se é Alice. Existe um lençol branco em cima da pessoa impedindo a visualização. Fico preocupado e planejo chegar perto para ter certeza se minha preocupação procede. Será que deixaram Alice no corredor só porque não temos plano de saúde? – pensei.
Fico paralisado em frente às portas, esperando o momento oportuno para entrar sorrateiramente pelo corredor e conferir minha suposição. Em cima do umbral o seguinte aviso: “Entrada Proibida – Área Restrita”. Leio e dissimulo indiferença.
- E que ninguém me impeça de atingir esse objetivo! – pensei com coragem.
Página 06 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Aproximo mais um pouco, olho em volta e percebo que a atendente encontra-se com os olhos fixados no monitor. Avanço delicadamente sobre as portas vai-e-vem e quando a metade do meu corpo acabara de atravessar, um grito alto, grave e desgraçado logo atrás de mim, ecoa por todo o corredor:
- SENHOR! VOLTE IMEDIATAMENTE! NÃO LEU QUE A ENTRADA NESTE RECINTO É PROIBIDA?
- Puta que o pariu – Xingo mentalmente, sem mexer com os lábios, mas no meu íntimo, uma imensa sobrecarga de revolta por ter sido repreendido mais uma vez em público.
- Desculpe cavalheiro, é que eu queria ir ao banheiro! – Respondi sem graça, sem rumo e ainda chamando-o de cavalheiro, para tentar manter naturalidade e recompor-me.
- O banheiro fica naquela direção. – Disse o gordo sem pescoço, apontando o dedo indicador para o lado oposto.
- Falta de respeito! Falar comigo naquela altura. Num hospital! Francamente! – resmunguei.
Como fui esquecer da possibilidade de existir um homem gordo e sem pescoço seguindo-me com os olhos, feito uma múmia, atrás da coluna? – me pergunto.
Dirijo-me a passos largos ao banheiro para disfarçar minha desorientação e aproveito para lavar o meu rosto e pensar em alguma outra solução.
Não consigo me acalmar e volto imediatamente até à atendente andrógina e disparo:
- Olha aqui menina! Minha esposa deu entrada neste hospital a uma hora, não fui bem atendido e agora mesmo vi uma maca estacionada no final do corredor e exijo saber se é Alice que está abandonada. – falei tão alto e descontrolado que até cuspi sem querer no seu rosto.
A atendente levanta a cabeça lentamente em minha direção, com aqueles olhos pequenos e arrogantes, típico de quem não se sente ameaçado e subjuga outra pessoa, tentando demonstrar controle da situação,vociferando logo a seguir:
- Olha aqui! Digo eu, senhor! Eu já falei e vou repetir. Sua esposa já recebeu o primeiro atendimento estabelecido por lei e não estamos conseguindo vaga no hospital público. Ela não se encontra no corredor! O senhor se enganou. Fui claro ou quer que eu chame o segurança se levantar a voz mais uma vez para mim?
- Mas ela está bem? Não corre mais perigo? - perguntei baixando o tom de voz.
- Senhor, aguarde no sofá por favor! O médico responsável pelo seu caso virá conversar assim que ele concluir seus trabalhos no centro cirúrgico. Peço que o senhor se sente naquele sofá – respondeu de forma ríspida.
- Não vou me sentar! – Falei alto e olhando para ela.
Página 07 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Quem ela pensa que é me mandando sentar num sofá como se tivesse me colocando de castigo, feito uma criança, para pensar na vida após fazer uma arte!? – pensei com meus botões.
Distancio-me da moça imediatamente para evitar mandar ela para o mesmo lugar que desejei ao gordo quando apontou aquele dedo grosso em minha direção!
Aproximo das vidraças da sala para tentar esquecer esse imbróglio, mas me sinto pior do que antes. O reflexo da luz estroboscópica da ambulância me alcança e quase me cega por alguns segundos. Pisco os olhos e observo enfermeiros e pessoas ensanguentadas entrando sobre as macas como se estivessem vindo de um campo de batalha. Suponho que ocorreu algum acidente grave nas proximidades. Meu batimento cardíaco aumenta e se continuar assim, serei o próximo a deitar numa dessas macas ou numa urna fúnebre. Por um instante fico pensando se existem médicos suficientes para atender tanta gente! Tento me acalmar voltando para o sofá, de onde não deveria ter saído.
Reparo que ao lado do sofá existe um compartimento cheio de revistas populares e apenas um livro com o título “Hagiografia”. Logo descubro que se trata de um tipo de biografia que consiste na descrição da vida de algum santo, beato e servos de Deus, eleitos pela igreja católica, pela sua vida e pela prática de virtudes heroicas.
- Nunca imaginei que existisse esse tipo de coisa!
Enquanto vou apanhando intimidade com o livro, levanto a cabeça e reparo que no alto da parede azul, atrás do balcão das atendentes, repousa uma imagem de aproximadamente meio metro e uma vela tremeluzente ao seu lado. Fecho provisoriamente o livro e me levanto para examinar a estátua de perto e procurar a sua história neste livro. Logo que me levanto percebo que as pessoas presentes na sala me acompanham com o olhar. Tento não me importar com essa vigilância silenciosa e inconveniente. Visualizo com um pouco de dificuldade uma gravação em auto-relevo escrita na base da escultura, feita em letras romanas: Santa Ágata – Virgem e Mártir.
Procuro seu nome pelo índice e descubro sua história na página 10. Sua especialidade é proteger os seios! O livro revela que existe uma proteção estabelecida para cada parte do corpo, profissões, doenças e todos males. Leio também que Ágata era filha de uma nobre família siciliana e muito bonita. O senador romano Quintianus, prefeito da região, pediu-a em casamento. Ela recusou-se e ele por vingança, colocou-a em um bordel e mesmo assim ela conseguiu escapar virgem. Achei engraçado essa parte!
Quintianus, então, acusou-a de pertencer a alguma seita e ela foi condenada e esticada na roda, açoitada, marcada com ferros em brasa e, finalmente, teve seus seios cortados. Não foram permitidos remédios, nem ataduras nas suas feridas e ela foi jogada num calabouço escuro e sem comida.
Conta a tradição que ela teve uma visão de São Pedro acompanhado de um jovem carregando uma tocha. O jovem aplicou óleos medicinais em seus ferimentos promovendo a sua cura. Quatro dias mais tarde, furioso pela cura milagrosa de Santa Ágata, Quintianus mandou que carrascos a rolassem nua, sobre uma cama de carvão em brasa misturado com pedaços de vidros.
Página 08 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Santa Ágata acreditava que a morte seria um feliz final para a sua torturas. Continuando a tenebrosa leitura, descubro também que os carrascos tinham o cuidado para não deixá-la morrer e carregaram o seu corpo alquebrado de volta a cela, enquanto ela orava pela liberdade. Naquele exato momento, um terremoto sacudiu a prisão e ela veio a falecer.
No seu funeral, inexplicavelmente, apareceu um jovem com uma tocha para honrá-la e pouco tempo depois, Quintianus foi jogado no rio pelo seu cavalo e afogou-se.
No primeiro aniversário da morte de Ágata, o vulcão do Monte Edna iniciou uma erupão. Os devotos de Santa Ágata tomaram o seu véu e colocando-o na ponta de uma lança subiram a montanha e o fluxo de lava milagrosamente parou.
A sua tumba está na Catania, Sicília e o seu véu está num santuário na Catedral de Florença. Várias igrejas espalhadas pelo mundo são dedicadas a ela.
Termino de ler isso e fico pasmo com a biografia da santa que mais parece uma aventura de cinema.
A minha mente não consegue admitir tal estória com naturalidade. Trata-se de uma história surreal, pueril, inventada e criada com o único propósito de forjar mártires para atender as mais diversas necessidades do ser humano. Se a tal proteção atribuída a essa santa funcionasse mesmo nào haveria necessidade de convênio médico e ela teria se safado sem os terríveis sofrimentos.. Que história absurda!
Acredito que essa parede azul teria sido melhor aproveitada se tivesse um busto em homenagem a Hipócrates, aquele médico grego, cujas ideias lançou a base da medicina moderna a dois mil anos.
Seu pensamento se resumia assim: “Cada doença tem sua própria natureza e nenhuma surge sem sua causa natural”. Com essa ideia simples, a medicina sofreu uma revolução. Antes de Hipócrates a saúde e a doença estavam nas mãos dos deuses. Mais de vinte séculos depois muita gente ainda ainda acredita na intervenção dos “deuses modernos” com nomes de santos protetores. O humano é mesmo um bicho incorrigível.
Página 09 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Minha coluna arde e as pernas doem de cansaço. Olho de soslaio à porta e o segurança gordo sem pescoço continua lá. Sua cara me faz recordar a tentativa frustrada e ainda sinto raiva dele. Estou sentado novamente e vou confessar uma mania que eu tenho. Gosto de tentar adivinhar e criar a história de cada pessoa apenas com a aparência. Hábito adquirido desde tenra idade. Em frente ao sofá onde estou, um jovem cabeludo de aproximadamente vinte e cinco anos consulta o relógio a todo momento e segura uma grande bolsa. Imagino que dentro dela contenha fraldas, toalhas e toda parafernália para receber seu rebento. Pelo excesso de nervosismo, presumo que se trata do primeiro filho. Enquanto mapeio o ambiente, uma senhora de óculos puxa assunto comigo:
- Está frio aqui né? – me pergunta segurando outra bolsa.
- Sim. O ar condicionado funciona. – respondo qualquer banalidade, mas minha vontade mesmo é ficar quieto no meu canto enquanto não recebo notícias de Alice.
- Estou esperando a minha nora. Ela está na sala de parto se preparando para a chegada de minha primeira netinha. – disse orgulhosa, tentando insistir na conversa.
- Esse aqui é meu filho. – emendou virando o rosto para o cabeludo e confirmando minha intuição de que o rapaz aguardava ansioso.
- E o senhor? Está esperando alguém? – pronto, começou bisbilhotar! Agora sou obrigado a passar informações sobre a minha vida. – pensei.
- Estou aguardando a minha esposa voltar da emergência. Ela teve uma leve indisposição, mas logo estará em casa. – falei tentando ser educado sem entrar em detalhes, mas com o desejo de continuar quieto no meu canto.
- Fica tranquilo. Deus está no controle. No final tudo vai dar certo. Confie nele. – disse sorrindo.
Página 10 - Meu Livro: Memórias de Zara Crotone
Esse comentário arremata qualquer tipo de conversa. A gênese de qualquer diálogo improdutivo costuma ser a chuva, o sol, se Deus quiser e no final tudo vai dar certo!
Para terminar logo o assunto, balanço a cabeça concordando com ela. Assim garanto um pouco de silêncio, pois não sinto nenhuma vontade de conversar.
Uma moça de olhos verdes e cabelos loiros, saia curta e fones de ouvido, tipo Lolita, tateia seu aparelho celular com impaciência. Pela sua fisionomia parece mais aborrecida por estar longe da visão de pretendentes e amigos de “balada”, do que preocupada com a saúde de mãe. Por último, um homem com pinta de quarenta anos, magro, alto, divide seu olhar entre o monitor da televisão e as pernas da loira. Suponho que não vive bem com a sua mulher. Talvez seja infeliz e acorrentado num casamento de fachada. Ele usa uma pochete amarrada na cintura que por si só reduz qualquer chance de conquista, embora sua aparência e idade já seria suficiente para não obter nenhuma atenção de uma jovem bonita na flor da idade, salvo possuísse recursos suficientes para manter um bom padrão de vida para ela e o seu futuro amante.
Página 11 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Finalmente, depois de duas horas de espera, um homem vestido de branco se aproxima a passos largos em direção ao balcão, cochicha algo com a atendente e vem em minha direção.
No bolso de seu jaleco as seguintes inscrições: Dr. Kurzhals
- Boa noite, sou o médico deste turno e preciso ter uma conversa rápida e em particular com o senhor. Por favor me acompanhe até minha sala. – disse sem rodeios saindo com pressa em direção ao corredor.
Afastou-se tão rápido que enquanto eu ainda ajeitava o cinto de minha calça o doutor já estava segurando a porta vai-e-vem para eu passar, enquanto olhava impaciente para os papéis em outra mão.
Eu o segui por um grande corredor, bem iluminado e cheirando a éter, enquanto cruzava pelos enfermeiros com uniformes de linho branco e cabelos cobertos por toucas.. O médico abre uma porta e me convida para sentar, olhando nervosamente para o relógio.
- Bem, senhor... Como devo chamá-lo? – perguntou com seriedade olhando agora para o prontuário sem me fitar nos olhos.
- Sou Zara, marido de Alice. Como ela está? – perguntei ansioso
- Senhor Lara, pretendo ser bem direto, porque tenho uma cirurgia marcada para este momento e já estou atrasado.
- Pois não doutor... – olhei firmemente em seus olhos sem vontade nenhuma de corrigir o meu nome.
- Bem, Sr. as notícias não são boas. No prontuário consta que sua esposa deu entrada na emergência às 23:15h, com diagnóstico de infarto do miocárdio, sendo prescrito nitroglicerina sublingual, aspirina e oxigênio. Alice Salomé veio a óbito às 23:40h, apesar dos esforços de nossa equipe.
Preciso informar também que as despesas decorrentes desse procedimento será calculado e informado oportunamente ao senhor. Sinto muito. – disse sem rodeios com o rosto sem expressão alguma, olhando novamente para o relógio.
- Agora, o senhor me dê licença que preciso ir ao centro cirúrgico. O senhor sabe como é a vida de um médico né? A assistente social lhe entregará o atestado de óbito, o custo da medicação e explicará os detalhes para remoção do corpo. Sinto muito mesmo e boa noite! – emendou sem demonstrar um pingo de emoção..
Fico imóvel e em estado de choque ao receber aquela informação de forma tão insensível, direta e desumana enquanto a minha vista escurece e tudo começa girar. As pernas adormecem... Consigo dar um grito abafado para chamar a atenção de alguém e subitamente perco a consciência...
Página 12 - Meu livro: Memória de Zara Crotone
Acordei com dor de cabeça e meio confuso. Abro os olhos com muito esforço e a primeira coisa que vejo é uma uma forte luz branca e um ventilador ligado no teto. Quando tento levantar o o braço para tocar o meu rosto, percebo que estou amarrado numa cama. Sigo com os olhos uma agulha cravada em minha veia envolta com um esparadrapo e uma mangueirinha.
Do lado direito uma espécie de cortina sanfonada pendurada num suporte impede que eu veja o que existe do outro lado. Fico sem entender o que está ocorrendo. Para a minha sorte, um vento balança levemente a cortina e a desloca o suficiente para eu enxergar por uma pequena fresta que existe uma cama vazia coberta com um lençol sujo de sangue.
Tento examinar o pouco que me resta do campo visual para entender porque estou nessa cama. Não consigo me lembrar de nada. No meu lado esquerdo ouço uma respiração forte e pausada. Primeira conclusão é que tenho companhia. A cortina permanece imóvel e não consigo identificar o que se passa desse lado.
Tento levantar a minha a minha cabeça e uma forte tontura seguida de vertigem me derruba e afundo minha nuca no travesseiro. Fecho os olhos e tudo começa escurecer e rodar em alta velocidade.
Página 13 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Sonhei que caminhava descalço e desorientado numa fazenda de café. Os meus pés afundavam na terra macia e vagava sem destino, como Dante na selva escura. Aproximei-me de um rio e parei próximo à sua margem lotada de gravetos e folhas secas. Escalei uma pequena pedra lisa e angular cujo formato lembrava um trampolim, flexionei os joelhos, juntei as mãos na altura do ombro e mergulhei de olhos fechados no sentido transversal à correnteza. Era agradável e relaxante o contato com a água fria sobre o meu corpo. Após algumas braçadas, levantei a cabeça para fora da superfície e apesar da escuridão, avistei o vulto de uma pessoa sentada na entrada de uma pequena gruta do outro lado da margem. Um pequeno lampião fornecia uma pequena luminosidade.
Movido pela curiosidade, caminhei na direção daquela pessoa e me escondi atrás de um arbusto. Naquela distância, a imagem borrada impedia-me a visualização de seu rosto. Aproximei-me mais um pouco, tomando cuidado para não ser avistado e a intrigante imagem se formou. Ao lado da pessoa haviam dois cachorros descansando. Por um descuido, pisei sobre alguns gravetos e o ruído revelou a minha presença. Os animais me olharam com inesperada indiferença e permaneceram estáticos. O desconhecido, levantou-se e veio caminhando lentamente em minha direção.
Meu coração disparou por ter sido surpreendido e mais ainda ao ficar de frente com aquele rosto e perceber que era familiar. Era muito magro, cabelos lisos e pretos, caindo na testa e caminhava como um idoso. O espanto inicial foi substituído por uma súbita tristeza. Possuía a fisionomia de uma pessoa angustiada e derrotada. Senti vontade de abraçá-lo mas não tive coragem. Não restava mais dúvidas, era ele!
- Pai! O senhor aqui? – perguntei surpreso.
- Porque o senhor foi embora de nossas vidas, no momento em que nossa família mais necessitava de sua presença, seus exemplos e ensinamentos?
Enquanto eu perguntava ele permanecia cabisbaixo e silencioso.
Página 14 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
- Pai! – exclamei num tom mais alto. Depois que o senhor partiu, passamos muitas necessidades e tive uma infância miserável. Sem apoio, sem dinheiro e sem a sua proteção.
- Mamãe ficava deitada o dia inteiro, abatida e sem energias sequer para fazer um café!
- Pai! Pela última vez lhe imploro, fala comigo! Que lugar do mundo sua presença se fez mais importante do que a nossa família?
- Passamos muitas noites sem dormir esperando a sua volta. Olhávamos para o imenso céu estrelado, pedindo a Deus a sua volta. Porque abandonou as pessoas mais importantes de sua vida?
- Deus, silencioso como habitual, nunca respondeu nossas súplicas. O céu era indiferente à nossa dor... como o senhor! – Falei por impulso e de forma irracional.
Ele permanecia olhando para o chão de forma covarde e mais indefeso do que um réu diante de seu inquisidor, cuja acusação era injusta.
Sentia o peso das acusações e não conseguia se defender. Ele também não tinha culpa pelos caminhos inesperados da vida e foi também acorrentado e punido pela consciência pesada por algo que não podia lutar, a morte, nosso maior carrasco depois da consciência.
Página 15 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
- Sr. Zara, acorde! - Ouço uma voz aguda e me assusto com o barulho de seu calçado sobre o piso. Não reconheço aquele chamado e estou confuso.
- Sou Celi, a enfermeira desse setor. Está se sentindo melhor?
- Hã! O quê? Senhorita, o que estou fazendo aqui?
- Daqui a pouco o médico virá e conversará com o senhor. Tome esse comprimido com um pouco de água que vou te ajudar a sair dessa cama. Leio em sua ficha que o senhor já está de alta e pronto para despedir da gente. Vamos tomar um banho?
- Como assim? Por que estou aqui? – insisto tentando entender.
- Senhor, eu já expliquei, o médio logo virá conversar. Vamos, me dê as mãos e coloque os pés aqui nessa escadinha que eu te ajudo a descer e caminhamos até ao banheiro. - disse Celi apressadamente.
Como demoro um pouco para descer da cama, sou puxado bruscamente pelos braços e quase caio ao tentar endireitar o meu corpo.
Ela praticamente me empurra em direção ao banheiro, retira o meu roupão com extrema habilidade e me deixa sozinho embaixo da ducha de água quente.
Logo que fecho os olhos e começo a sentir o prazer com o contato da água escorrendo pela minha face a enfermeira enfia a mão em direção à torneira, desliga a ducha e sai rapidamente.
- Vamos, acabou o seu tempo! – grita a enfermeira após lançar uma toalha em cima da minha cabeça.
Visto minhas roupas e logo que saio do banheiro o médico vem em meu encontro. Assim que ele chega bem perto vejo o nome Kurzhals gravado em seu jaleco e minha mente dá um estalo e consigo me lembrar de todos os detalhes, desde a ambulância chegando com a Alice no Hospital até a dura notícia de sua morte transmitida de forma cruel e insensível desse carniceiro.
- Senhor Lara, bom dia! - disse o médico com as mãos estendidas para mim mas com os olhos esticados nas pernas da enfermeira. E ainda me chamou de Lara novamente! - Minha memória está retornando.
- O senhor teve uma queda de pressão, após ficar sabendo da morte de sua esposa e então passou uma noite em nosso hospital. Nossa direção, num gesto humanitário e sensibilizada com a situação do senhor, resolveu não cobrar as despesas com o seu atendimento.
Página 16 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
- Agora que o senhor já está recuperado, procure a nossa secretaria para tratar dos trâmites necessários para remoção do corpo e tenha um bom dia!
Ela falou: Tenha um bom dia!!! - penso desorientado.
Ela falou: Tenha um bom dia!!! - penso desorientado.
Viro-lhe as costas e saio desorientado em direção à primeira porta que vejo com destino à secretaria para cuidar dos trâmites funerais, antes que eu mate aquele desgraçado.
Página 17 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
Retorno à minha casa após realizar o solitário enterro de Alice. Nenhum amigo ou parente presente.
Permaneço imóvel na soleira da porta tentando encontrar forças para entrar. A solidão e meus pensamentos são os únicos companheiros. As minhas mãos trêmulas dificultam a abertura da porta.
Estou no meu meu deserto particular. Ninguém me espera atrás da porta. O espelho empoeirado na parede reflete de forma difusa o meu rosto. Meus olhos brilham e as lágrimas rolam pelos sulcos de minha pele flácida. As olheiras acentuadas revelam meu cansaço e desvio o olhar para não prolongar a minha auto-piedade. Fecho a porta da sala e desloco-me à cozinha para lavar as louças que ficaram na pia. As xícaras sujas de café sobre a mesa desarrumada foram as últimas testemunhas de Alice.
Sigo para o silêncio do quarto observando cada objeto. Em cima do criado mudo de Alice, o abajur ligado denunciava nossa saída súbita na noite anterior. Sobre o outro criado, um livro de Dante Alighieri, um copo d’água e um frasco de Rivotril. Ao lado da cama, uma estante suporta uma coleção de livros, meus amigos mortos que ainda sussurram e fazem companhia. A cama desarrumada ainda preserva as marcas de seu corpo sobre o colchão. Deito meu corpo fatigado mas não consigo adormecer. Reluto em tomar aquele medicamento que dá acesso a uma estadia provisória no vale das sombras. Acompanho o movimento contínuo das pinhas do relógio cuco, enquanto o sono não me alcança. Estico a mão até a estante e pego o livro de Dante enquanto o sono não me visita. É uma versão adaptada em prosa da obra prima “A Divina Comédia”. Logo na primeira página uma frase de impacto: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Parece até que essa frase foi escrita para mim.
No estado em que me encontro, procrastino essa leitura para um momento mais apropriado e deixo o livro em cima do criado. Sem alternativa e ansioso para adormecer, tomo 10 gotas daquele sonífero, cerro meus olhos e mergulho profundamente no sono.
Página 18 - Meu Livro: Memórias de Zara Crotone
Gritos da rua invadem as frestas de minha janela e permaneço mergulhado no escuro, adiando o retorno à vida sob o efeito residual do medicamento.
Abro os olhos e fito o teto ainda sonolento. Tento me levantar mas uma terrível vertigem me conduz a uma viagem espiral colorida, azul, violeta, lilás, com intervalos de enjoos e angústias.
Mantenho a calma e permaneço imóvel por mais alguns instantes, até que tudo pare de girar. Lembro do sonho e sinto um aperto no coração por um erro imperdoável em meu passado... Estou confuso.... Aquelas perguntas cortantes me atingiram feito lâminas afiadas em minha carne. Olho para o lado, não vejo ninguém e tomo a consciência de que estou justamente solitário colhendo os frutos que plantei.
Agora é tarde para arrepender e tenho que continuar minha caminhada.
Deslizo a mão vagarosamente sobre o rosto, sinto a minha pele oleosa e subitamente arregalo os olhos ao lembrar que dormi sem tomar banho!
Que absurdo! – penso em voz alta. A consciência de que adormeci sem esse ritual diário me apavora e salto da cama feito um soldado ao ouvir um toque da corneta. A água no meu corpo possui o efeito terapêutico e eu preciso me reeguer e enfrentar a vida a qualquer custo.
Corro para o banheiro, abro a torneira e sinto prazer com o contato da água gelada em meu corpo.
Sinto-me revigorado e essa energia me faz lembrar o período em que estive servindo as forças armadas aos dezoito anos de idade.
Naquela época, aprendi o verdadeiro significado das palavras: coragem e disciplina. Às 5:30h da manhã havia um toque de corneta chamado "alvorada" onde todos têm que levantar correndo, pois o tempo é cronometrado. Você tem que correr para o armário, destrancar o cadeado, pegar o pincel , sabão de barba, aparelho de barbear, escova de dente, por pasta, pegar sabonete, toalha e correr para o banheiro. Minha companhia, era assim que chamávamos as equipes, possuía cento e vinte homens e o banheiro contendo apenas 5 pias, cinco vasos sanitários e cinco chuveiros, todos com água fria. O tempo era curto e tínhamos que fazer barba, tomar banho, escovar os dentes e depois voltar correndo, colocar tudo no armário, pegar o uniforme, caneca, se vestir e entrar em forma para o café.
Página 19 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone
da manhã, às 6 horas. Ufa! E quem perdesse essa formação, além de ficar sem café, ficava preso no quartel à noite, para aprender a ser esperto.
Foi assim que aprendi ter disciplina e tomar banho gelado logo cedo. A grande maioria dos jovens, tão acostumada com o conforto da vida moderna não imagina e nem tolera essa correria logo ao despertar.
NOTA: A PUBLICAÇÃO DO LIVRO CONTINUA OPORTUNAMENTE.
Foi assim que aprendi ter disciplina e tomar banho gelado logo cedo. A grande maioria dos jovens, tão acostumada com o conforto da vida moderna não imagina e nem tolera essa correria logo ao despertar.
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