02/05/2014

Nosso Senhor Ayrton Senna do Brasil


Domingo passado, 06/04, após o meu café da manhã, estava navegando na internet com a televisão ligada. Levantei os meus olhos e acompanhei por alguns instantes um programa em homenagem a um piloto brasileiro. Vários depoimentos “comoventes”, com trilha sonora e tudo devidamente planejado para emocionar. Depoimentos lacrimejantes do Galvão Bueno, Parreira, Pedro Bial e outros semideuses representando o Olimpo e até uma senhorinha devidamente escolhida para preencher a cota dos “mortais“ relatando com orgulho a jornada do “herói brasileiro”. A pobre senhora exibia sua coleção de revistas e jornais sobre as corridas, viagens, férias e vida íntima de seu ídolo.

Se eu fosse uma pessoa “normal”, acharia tudo isso comovente, meus olhos encheriam de lágrimas e o meu domingo ficaria um pouco mais triste, relembrando a trajetória de um “verdadeiro brasileiro”. Porém, pelo que penso e o pouco que consegui assistir, apenas reforçou aquilo que eu já desconfiava: Sou mesmo um sujeito estranho no mundo. A cada dia me convenço mais disso. Devo ter algum “problema”, porque não consigo me emocionar e muito menos cultuar esse produto. Sou mesmo um pato no meio das galinhas.

O ronco do motor me incomoda. Os comentários do narrador me irritam. O mundo das corridas me enjoa. Tenho esse direito e isso não deveria ser um problema. Algumas pessoas não gostam de basquete, outras de pescaria, outras de jiló, outras detestam estudar, outras não gostam de trabalhar e algumas detestam sopa. A lista de coisas desagradáveis é extensa e cada um tem a sua. Porém quando falamos da paixão de alguém, isso costuma incomodar.

O cara foi um ótimo piloto? Que bom para ele e família. Acho aceitável uma pessoa admirar e até se espelhar em alguém que conseguiu superar desafios. Bons exemplos devem ser seguidos, sempre! Afinal, muitas pessoas são boas no que fazem. Agora torná-lo um mito pelas suas conquistas acho exagerado. Suas vitórias não alteraram em absolutamente nada a vida do brasileiro. Essa ideia propagada de “orgulho brasileiro” também não tem valor algum. De que vale sentir orgulho pela vitória de um piloto e continuar tendo uma vida miserável? Talvez sirva apenas para mais um assunto banal com os colegas de trabalho no dia seguinte. Mas convenhamos isso realmente é importante? Estou ciente de que posso desapontar muita gente escrevendo isso, porque ninguém admite que suas paixões ou crenças sejam afrontadas. Mas disso não me preocupo. Ninguém está imune a críticas. Peço desculpas aos meus amigos apaixonados por corridas. Não liguem para mim. Sou apenas um pato que escreve e anda.


Certa vez, houve uma onda chamada PNL, onde várias empresas contratavam psicólogos para conversar com seus funcionários e aumentar a produtividade! Para quem não sabe, PNL significa Programação Neolinguística. Se alguém tiver mais interesse nesse assunto, basta consultar o Google e em 0,23 segundos aparecerá no mínimo 154.000 resultados sobre esse tema.






Eu trabalhava numa fábrica de salsichas. Naquela época certo guru denominado “consultor”, foi contratado para fazer uma “lavagem cerebral” nos funcionários. Esse guru era fanático por corridas de Fórmula 1. Algumas pessoas são fanáticas por religião. Ele era fascinado pelo Nosso Senhor Ayrton Senna do Brasil. Certa vez, do alto de sua sabedoria, começou o treinamento afirmando que deveríamos nos tornar um CAMPEÃO como aquele piloto. O mundo precisa de CAMPEÕES. Ninguém deve ser um fracassado. Você é o que a sua mente pensa – ele dizia com entusiasmo. Se você pensar que é um CAMPEÃO, você será um CAMPEÃO. Amém!





Suas frases prontas aos poucos envolviam a plateia. Afaste das pessoas negativas – gritava como um pastor em cima de um púlpito. Só faltou dizer que o Diabo quer que todos empacotem salsichas até a aposentadoria! Mas isso a empresa não aprovaria.

Pela concepção daquela criatura contratada e bem remunerada, o mundo era dividido entre CAMPEÃO e fracassado. E só era fracassado quem não tinha força de vontade.

Eu jovem e inexperiente, sentado ali naquela poltrona, tentando descobrir o meu lugar, raciocinava: Não ganhava dinheiro como Ayrton. Não pegava as mulheres que ele pegava. Não tinha dinheiro no bolso e ainda por cima andava de ônibus... Não demorei muito para descobrir de que lado eu estava.

Mas nosso guru queria que acreditássemos que todos poderiam ser CAMPEÕES. É só reprogramar a mente. Simples! Nosso guru falava do piloto como um grande herói da nação. Era tanto entusiasmo que até cuspia. Seus olhos brilhavam como se estivesse pregando sobre o homem que deu sua vida para salvar a humanidade da miséria ou do dilúvio. E eu, sentado com cara de tédio sendo obrigado a assistir a “verdade absoluta” enquanto meus amigos iam aos poucos sendo hipnotizados com aquele discurso barato de autoajuda. E o pior ainda estava por vir. O guru pediu que todos fechassem os olhinhos, esticassem as mãos e se imaginassem dirigindo uma Ferrari, linda, vermelha, possante!

Nesse instante, um louvor baixinho é tocado na caixinha de som do auditório com aquela famosa musiquinha que a TV colocava quando o piloto vencia uma prova: pan-pan-pan pan-pan-pan... visando criar um clima envolvente.

Eu mantive meus olhos abertos. Não era possível que eu estivesse vivendo aquele momento mágico. Meus colegas ávidos para colaborar como uma plateia frente ao hipnotizador seguia cegamente suas instruções. A musiquinha suave continuava envolvente. Quando ele olhava em minha direção,eu imediatamente fechava os olhos fingindo colaboração. Não podia me queimar. Nesse momento, todos com os braços esticados, seguravam um volante imaginário e eu, o único pateta da sala de treinamento com os olhos abertos e os braços cruzados, olhava ceticamente aquele espetáculo infantil. Alguns colegas viajaram tanto nessa história que imitavam o ronco dos automóveis com cara de debiloide se sentindo um CAMPEÃO por alguns instantes. A sala por um breve momento esteve lotada de CAMPEÕES e só eu fracassado. O espetáculo terminou. A música pan-pan-pan foi desligada e pude perceber a satisfação no rosto de cada um. Era um efeito anestesiante como uma bebida. Logo depois, saíram da sala e voltaram com o rabo entre as pernas feito manada rumo ao abate para enfrentar a sua dura realidade. A sirene tocou e todos continuaram suas tarefas mecanizadas e repetitivas no empacotamento de salsichas em caixas de papelão, amando desde então Nosso Senhor Ayrton Senna do Brasil ililil!

Essa onda passou e outras surgiram afinal o número de “fracassados” abundam assim como a quantidade de ESPERTOS.


Escrito por Alex Gil Rodrigues em 12/04/2014.

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