14/04/2023

Macanudo Zé Marcino


 O Macanudo Zé Marcino andava mais sumido que fio dental em polpa de china gorda, pois vivia escondido no retiro Rincão da onça-pintada, capivara, cutia, tamanduá e araras. Só queria saber de contar nos dedos grossos, quanto tempo ainda faltava para cultivar suas aves selvagens no xilindró de arame fino e madeiras finas de flecha-de-ubá, taquara e embaúba, avolumando seu monte pascoal abdominal e morrendo de medo de ser demitido.

Escute Macanudo, pois vou falar apenas uma vez: pega seu petiço, carrega o fiambre e dirige pra lá, para cuidar do ataúde daquele povoado às margens do Rio Paraíba que vâmu fechá aquela tapera de 70 anos, que tá veia demais pra recauchutar e num temos mais denarius para jogar lá.

Num Upa, com seu corpanzil avantajado, pançudo, bafo de túmulo e bueiro, jeitão desajeitado e sorriso bestial, recebe a enxada, pá e xerenga, do índio velho e determina: vá engendrar o jazigo perpétuo daquela cidade “imunda” e povo alegre demais pro meu gosto, pois prefiro o povo traíra de nossa terrinha, que num dá bom-dia, faz cara de merda e abaixa a cabeça oiando pru pé.

E tem mais Macanudo: - Enfia o relho, aperta o estribo e elimina os queixo-duro, pois depois de ti, tudo estará morto, oco e árido, avisa o índio velho caudilho num momento de lucidez e visão futura.

Até hoje, nenhum verme que primeiro roeu as frias carnes de Brás cubas, sobrou vivo na terra vazia, oca e desértica, prá contar que encantos eram estes que nosso chistoso Macanudo tinha que agradou por demais o índio velho, a ponto de oferecer um linda recompensa em final de carreira, que nenhum xerife do oeste, nem do leste, jamais ofereceu, para que um jagunço quase aposentado, mal ajambrado, com chapéu de palha, caniço, pezão no chão e dedo grosso, fosse ressuscitado para uma missão tão “nobre” e fúnebre. Esse jagunço sortudo não cansa de contar pra todo mundo que prefere uma enxada que uma pena ou teclado. Êta Chico bento sortudo este!

Vai entender o que se passa na cabeça de um índio velho...

Nosso zarro herói, embretado nessa missão, enfrenta os grandes temas que estavam por vir nos próximos 6 anos, haraganeando aos enleios do computador, os chasques pela internet, o esmirrado telefone celular, o dedo duro e grosso golpeando as teclas sensíveis do computador, e-mails e muitos jornais, a solidão chocha da sala gerencial climatizada, o soninho habitual depois do almoço, que teimava em fechar seus olhinhos durante à tarde, os milagres guindásticos do Viagra prá brincar com as gurias da Paulicéia no Blue Tree Towers, seu motel preferido, ops, o hotel favorito da Avipam, a preocupação com o Corola e o xenon paraguaio, as urupucas e o sibilo dos pássaros trinca-ferros, sabiás e curiós, a mente bucólica de um caipira perdido na urbi et orbi, a alcoolemia das segundas-feiras, a paciência homérica da profitente para ensinar-lhe o idioma anglo-saxão e suportar seu terrível aflato. E olhe, que se a professorinha auto-falante, desse mole, nosso herói passava o caniço na coitada, como preparativo para os surungos anuais e suas birinaites.

E nisso, caro leitor, nosso herói pára-quedista casual não está solito nesse entrevero. Comparece em sua história como convidado especial por um bom tempo, para contribuir e preencher o ócio de nosso xerife impostor. Este elemento viria a se tornar seu comparsa e especialista em sege da era moderna, seu segundo hobby, depois dos penosos. A propósito, este jagunço era ajudante de faina, conhecido como Joestino Guajuvira Sampinho, ou para as más línguas: Gaudério do administrativo. Era diáfano, delgado, sabujo e alpinista social. Sabia tudo da invenção de Henry Ford e dabliú-V, hehehe...é VW!, sua segunda paixão... E tem mais, não era um sujeito lhano, vez que esse guasca era um verdadeiro guaipeca tramposo e bajulador.

Este Gaudério, como bom pára-quedista e oportunista, caiu literalmente nas graças deste sabujo inseguro, com sua cabeça de zéfiro e miolos de geléia. Nosso herói tocava sua vidinha, como uma viola obediente aos acordes de um experiente músico, na maior tranqüilidade, porém correndo riscos e esquecendo-se de envolver-se com a missão transmitida pelo velho índio. Mas isso não era pobrema, no linguajar de nosso super-herói, pois este homem tem muita sorte e corpo fechado. Sempre esteve cercado de gente forte e competente que o carregava e o sustentava 6 anos consecutivos. Consegue apropriar das estrelas, selos de qualidade (certificações), quadros e até aparecia em várias películas fotossensíveis com sorriso de Shrek, roubando os louros de seus criados.

Nosso super-herói tem a vida que sonhava e não remascava em outra coisa senão nos seus passarinhos, seu ótimo salário, aparar seus pedaços de unha de mão cortada à mesa, cuidar da obesidade de sua conta bancária, seu automóvel com placa de bicho de pena colorida que voa na cidade preferida do índio velho, brigando com o teclado e bebendo sua cachacinha da boa que passarinho num bebe e com seu relógio que teima em rodar devagar, pospondo a volta do Macanudo Marcino à terra do povo hermano de Rio Claro, Pirassununga e Moji-Mirim. Êta revelação do inferno que o índio velho teve. Este sonho custou muito caro para o povo do engenho fluminense. Como nossa ralé sofreu com Macanudo! Foi ducaráio sua longa e desastrosa estadia em nossa terra. Nosso povo conhecia suas indecências e não podia fazer nada. Esta cumplicidade custou muito caro. O pêndulo movimentava, para a direita e para a esquerda...O sarcófago estava sendo construído...Nosso gólgota estava sendo feito no nº 655...

Sofremos mais que Geni do Zepelim gigante de Chico, recebendo patola de bosta na cara, como retorno por tudo que fizemos. Quanta ingratidão! Muito se pergunta, se se ouvida de seus compromissos, por hebetismo, despreparo ou incapacidade...Ou tudo isso junto e mais um pouco...

Mas nada assusta mais esse guasca agora, que só treme a perninha fina quando o índio velho faz perguntas sobre a dipiei ou algum detalhe do coalho, da massa da westfália ou alguma contaminação no engenho. Pena que o Zepelim Gigante não voltou logo para levar este verdadeiro encosto tranca-rua, ou melhor tranca-fábrica, todo lambuzado com tudo aquilo que Geni ganhou do povo...

Como sofre e faz sofrer nosso perdido herói, contando os dias prá aposentar, totalmente baldado na urbe, alheio a tudo e a todos. Nosso valente herói vivia tremendo o beicinho e enxugando gotas de suor na testa, quando índio velho cobrava sua missão no engenho. Numa certa tarde chuvosa, a dupla de haragano, aquele gaudério puxa-saco que apareceu como convidado no início de nosso calvário, foi ao roçado familiar, para esquecer do ofício, usando o coturno branco da fabricação, subtraído do almoxarifado da dipiei, aos olhos enviesados e perplexos dos colaboradores que seguem princípios morais socialmente aceitos com a cara rubrada, por possuir um anti-herói, capaz de superar Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, a léguas de distâncias...

A tarde de nosso Macanudo e do gaudério foi por demais aprazível! O roçado tinha muitos pássaros e o celeiro estava cheio de alimentos. Tinha pacova, milho, macacheira, aluá, cachirí, maparás e uma piraçununga envelhecida que encheu a boca de saliva, deste nosso beberrão e comilão...Era gota de vontade escorrendo pelo cantinho do sorriso bestial e escorrendo pela face, como artérias de um fino rio Cotiara. Não faltava mais nada pra satisfazer Macanudo. Ele gostava muito de cavaquear e dormir com a barriga roliça voltada pra cima, como um Sancho Pança, olhando para o zênite...Ali era mais feliz que Poliana, aquela exagerada otimista chatíssima que as adolescentes conhecem muito bem. Do seu lado direito, estava o gaudério com as mãos ocupadas com o saco de seu protetor, sendo mais fiel que rocinante e Sancho Pança juntos. Ali, saciado das delícias do roçado, Macanudo adormeceu e sonhou... Sonhou que teria uma nova Missão...Coitado de nosso herói...ainda bem que foi apenas um sonho...a estrada te espera!

Macanudo matou a saudade do cheiro da terra molhada e do cabo da enxada, sua ferramenta preferida da terra onde foi parido e nunca deveria ter saído, para o bem do povo barra-mansense!

Macanudo, sua estória em nosso engenho é longa, dramática, estéril e forjada pelo medo e desesperança. Não iremos continuar a partir desta, pois sofremos demais com sua infeliz companhia. Nosso povo oferece uma última homenagem e torce para que esqueça Barra Mansa, uma cidade que o acolheu muito bem. Perdemos tempo demais com o senhor e esperamos nunca mais escrever sobre sua pessoa, prometemos. Precisamos cuidar de nossa vida a partir de agora e você da sua, longe daqui, de preferência, muito longe mesmo. Por favor, esqueça-nos, pois desejamos recuperar nossa lucidez no mar da impotência e injustiças que vivemos na sua companhia e ter paz de espírito e um ano 2008 muito melhor. Não esperamos consolo ou apoio psicológico contratado, pois recusamos as palavras mecânicas ditas por “motivadores” com tarefas dirigidas e idiotizadas de barbantinhos e mãos dadas! Nem desejamos “gratidão financeira” depositada em conta bancária...Nada quitará o deserto psicológico que nos causou com o fechamento da fábrica. Enfrentaremos o novo tempo e o peso da realidade sem a ingenuidade de acreditar que pertencíamos a uma família...Hoje somos mais maduros e vamos suportar com esperança o deserto e aridez que deixou em nossas vidas... 

03/04/2023

Como lidar com o luto de pessoas vivas.

Pretendo escrever sobre o luto de pessoas vivas.

Vocês já pararam para pensar neste tema?

Algumas pessoas se vão ainda em vida..


(Interrompendo o texto, continuarei em breve)

02/04/2023

Domingo de céu azul





O quarto está escuro e ligo o abajur.

É domingo e nem sabia.

Abro a janela e percebo a cor azul do céu limpo.

Preciso tomar meu Puran em jejum e buscar o pão.

Caminho pela rua vazia, céu lindo e vegetação verde.

O ambiente me enche de satisfação apenas por buscar o pão para o café da manhã.

Entro na fila pequena padaria do bairro e me deparo com a realidade sem cores.

Percebo que um senhor bem vestido, com roupa de ir à missa, como se dizia antigamente, encontra-se paralisado no meio da padaria, na fila, mantendo-se uma distância exagerada do balcão, esperando sua vez.

Falo bom dia, pergunto-lhe se está na fila e ele responde apenas balançando a cabeça.

Confesso que fiquei irritado pelo seu "poder" exagerado de impedir a aproximação ao balcão.

Espero mais um pouco e falo a ele que passaria sua frente, porém ciente de sua vez de ser atendido.

Fiz isso apenas para não ficar parado atrás do "dono do espaço".

Pão comprado na minha vez e problema resolvido.

Sinto vontade de sentir o sol no rosto mais um pouco, pois o dia começou lindo e eu queria prolongar aquele prazer.

Outras coisas acontecem na sequência que prefiro nem relatar...

Isso é uma gotinha banal...mas uma gota apenas não transborda um copo.

A vantagem de estar sozinho é que ninguém estraga o seu dia e também não te criticam.


Isso é bom!

06/02/2022

Domingo triste







Mais um final de domingo.
A roda continua.
Segunda-feira, terça-feira, quarta-feira...
Quinta-feira, sexta-feira, sexta-feira.
Verão, Outono, Inverno.
Chuva, sol, frio, calor.
Ano novo, vida nova?
Viver é trabalhar, dormir e trabalhar?
Descansar para trabalhar e trabalhar para descansar?
O fadiga é o prêmio do dia.
Acordar para resolver problemas.
Dormir para enfrentar novos problemas.
Problemas da mente e do mundo real.
O relógio não para.
Feliz Aniversário, Feliz Natal!
Feliz Ano Novo!
Falta muito para sexta-feira?
Falta muito pra tudo acabar?



28/08/2021

O bem deve estar por perto. Será?


“Sabe, Sancho, todas essas tempestades que acontecem conosco são sinais de que em breve o tempo se acalmará e que coisas boas têm de acontecer; porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durado muito tempo, o bem deve estar por perto." D. Quixote de La Mancha.


Comentário: O conceito bem e mal foi inventado pela mente humana, além de ser atemporal. É lógico que a chuva uma hora passa, naturalmente. Sem programação ou intervenção. A natureza é indiferente.






08/05/2020

Capa de meu livro: Memórias de Zara Crotone

                                                                                                                                                                                                                  

Página 01 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone

Introdução


Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Outras lembranças, ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembranças em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um considerável número dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.

Fiódor Dostoiéviski

Página 02 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone


Meus raros leitores, eu me chamo Zara Crotone e aproximo dos 70 anos. Não quero ser exemplo de nada e nem peço a sua compaixão pela minha idade. Preciso contar urgente minha história e meus segredos, antes do meu retorno implacável ao grande nada. Meu prazo de validade está chegando ao fim, como tudo que nasce, cresce e desaparece na natureza. Com o decorrer dos anos, somos esquecidos ainda em vida de forma lenta e gradual. Primeiro pelas pessoas que não obtêm mais nenhuma vantagem com nossa existência, depois por aqueles que de alguma forma ajudamos, em seguida pelas amizades circunstanciais e por último por aqueles que amamos. Não necessariamente nessa ordem.

Daqui a duas gerações ninguém mais saberá o que signifiquei e realizei enquanto respirei. Mas isso também não terá importância alguma. Fui apenas mais um ser pensante, finito e útil por algum tempo.


Talvez algum descendente ou estranho encontre minha última fotografia esquecida no meio dos documentos da família, no fundo de uma gaveta. Quem sabe até perca preciosos segundos repousando os olhos sobre aquela fisionomia desconhecida, impressa em papel amarelado pela ação do tempo. E isso também não será importante.

E provavelmente, essa pessoa, num gesto desinteressado, descartará esse papel insignificante na lata de lixo e assim consolidar definitivamente a extinção de minha última imagem. Nada disso também terá importância. 

Para me confortar, penso, enquanto existo, nas palavras de Epicuro:

“O mais terrível dos males, a morte, nada representa para nós, pois enquanto estamos vivos a morte não existe e quando a morte acontece nós deixamos de existir”

Diante desse quadro pintado com tintas cinzentas, só me resta dedicar a minha vida aos poucos que me toleraram ao segundo verme que roer as frias carnes do meu cadáver, pois o primeiro foi inesquecivelmente dedicado à Bras Cubas, de Machado de Assis.

E já que citei um escritor brasileiro eu não poderia deixar de mencionar Fiódor Dostoiéviski, em seu romance “Memórias do Subsolo” onde ele disse que algum segredo da vida de um homem perece junto dele, porém, contrariando o mestre da literatura russa, pretendo perecer sem os meus e compartilhar com vocês a história da minha vida.

Página 03 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone


A ambulância e sua sirene estridente interrompem o silêncio da noite escura e avançam em alta velocidade com destino ao Hospital Santa Ágata.

Sigo afundado no banco carona do condutor com as pupilas dilatadas e o coração disparado, pressionando o meu pé involuntariamente contra o fundo do veículo, como se fosse um acelerador imaginário. O vento invade agressivamente as janelas e quase me tira o fôlego. A iluminação frenética do giroflex rodopiando seus raios ofuscantes na rodovia, transforma a corrida em um espetáculo angustiante e depressivo. 

Alice, minha esposa, encontra-se desmaiada e sendo transportada na traseira da ambulância, ao hospital mais próximo de nossa casa. Ela sentiu uma dor aguda no peito e foi foi reanimada a tempo com a chegada imediata da equipe de socorro.

Chegamos às 23:00h no portão principal da emergência do hospital particular, exatamente oito minutos após o seu desmaio. O condutor do veículo entra de ré, com as sirenes desligadas e estaciona próximo à porta de emergência. Salto da cabine segurando a maçaneta, com muita dificuldade e finalmente apoio meu peso no chão, reencontrando meu equilíbrio. Passo a mão no rosto para limpar a poeira da viagem e sinto minha pele fria como de um cadáver. Por pouco quase necessito de uma maca para receber cuidados ou ser notícia da seção necrológica do jornal da cidade. 

Enfermeiros ágeis abrem a porta traseira, deslizam a maca com diligência e transporta Alice pelo corredor até desaparecer completamente. Imediatamente um funcionário uniformizado orienta direcionar-me à recepção para aguardar o atendimento.

Entro na sala ampla, asséptica e refrigerada. Na parede, um quadro branco revela o rosto de uma enfermeira linda, sorrindo com os olhos e o dedo indicador tocando suavemente seus lábios pedindo silêncio. 

Procuro acomodar-me no confortável sofá duplamente preocupado. Primeiro pelo estado de saúde de Alice e depois por... 

Bem! Não quero pensar sobe isso agora... – desviei o pensamento

Espero que Alice se recupere o mais breve possível e possamos voltar para a nossa casa. – pensei.

Enquanto isso, o segurança do hospital estica o braço em direção ao balcão para preenchimento da ficha cadastral. E essa é justamente a minha segunda preocupação!

Obedeço a orientação recebida e me dirijo até a cadeira em frente ao balcão. Comunico que estou acompanhando a minha esposa que acabara de entrar na emergência do hospital.

Página 04 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone


Uma recepcionista com rosto andrógino, mãos compridas e olhar imponente, dispara a primeira pergunta de forma robotizada:

- Boa noite senhor! Para que possa ser atendido com todo o conforto e eficiência no Hospital Santa Ágata, necessito que me forneça, por gentileza, seus dados para iniciarmos o cadastro. 

- É a primeira consulta, senhor? – emendou.

- Sim. É a primeira vez que entro aqui. - respondi

- E qual o seu nome e data de nascimento? – disse olhando para o monitor

- Eu me chamo Zara Crotone e nasci em 15/10/1944 

- E o nome de sua esposa e data de nascimento? – pergunta logo após digitar.

- Alice Salomé em 12/02/1949. - respondi 

- Muito bem, agora necessito que o senhor me forneça o cartão do convênio da paciente. 

Fiquei embaraçado e em silêncio por alguns instantes olhando para o chão na tentativa de buscar uma resposta, mas não sabia o que falar. 

- Senhor! Eu preciso do cartão do convênio. Poderia me passar por gentileza? – Perguntou novamente, demonstrando impaciência.

Suspirei, aproximei-me do seu rosto e respondi bem baixinho para que as outras pessoas presentes não ouvissem:

- Lamento informar senhorita, mas infelizmente não temos plano de saúde.

- O SENHOR NÃO POSSUI CONVÊNIO? – pergunta a moça num tom alto o suficiente para a sala inteira ouvir.

Olho em volta e percebo todos os olhares em minha direção. Fico envergonhado e novamente me aproximo e quase sussurro: 

- Infelizmente não tenho condições de pagar um plano de saúde na minha idade, mas se... 

– mal terminei a frase e fui interrompido.

- Neste caso senhor – ela fala alto novamente - necessitaremos de uma folha de cheque assinada para continuarmos com os procedimentos. O senhor é correntista de qual banco?

- Infelizmente, há muito tempo não possuo talão de cheques. Sou aposentado e recebo minha renda através da conta salário – respondi.

- Neste caso senhor, não será possível a internação da paciente. O senhor possui algum filho ou parente que possa garantir os recursos necessários? Se precisar, pode usar este telefone. – apontou gentilmente o telefone que estava do seu lado, demonstrando solidariedade.

Página 05 - Meu livro: Memórias de Zara Crotone


- Infelizmente não temos filhos, senhorita. Tenho apenas a minha casa e uma coleção de livros. Sou um homem de poucos recursos, mas dou minha palavra que consigo dinheiro emprestado para pagar as despesas. 

- O senhor não compreendeu! Nosso hospital não trabalha dessa forma. Precisamos de uma garantia. 

O senhor tem que entender que possuímos os melhores médicos da região e isso requer recursos financeiros! Sinto muito, mas não podemos prosseguir com a internação. Neste caso, entraremos em contato com a rede pública e providenciaremos a transferência da paciente. – Disparou sem nenhum sentimento humanitário, quase perdendo o fôlego. 

- Mas, senhorita! Receio que minha esposa não consiga chegar de forma segura à outro hospital. Por favor, converse com o responsável para deixar ela ser atendida e depois encontramos uma solução. Eu não me recuso a pagar. Sou honesto e trabalhei a vida inteira! Posso conseguir um empréstimo bancário para aposentados, trabalhar aqui ou até mesmo vender a minha casa, se necessário – Falei meio no desespero. 

- Senhor, aguarde naquele sofá por favor. Levarei o seu caso à nossa supervisão e assim que possível lhe informarei o que pode ser feito – disse de forma seca para encerrar o assunto. 


Imediatamente essa recepcionista andrógina desviou o seu olhar para uma senhora - que me observava com cara de reprovação - e convidou-a para sentar-se à sua frente, com um sorriso forçado, tentando demonstrar simpatia. 


- Boa noite senhora! ... disse ela de forma mecanizada mostrando seus dentes. 

Retorno imediatamente ao sofá, sentindo-me como um cão vira-lata sem dono, abandonado à própria sorte no final da vida. 

Senhor, senhor, senhora... Palavrinha que mantêm a distância, disfarçada de respeito. – pensei! 

Minha coluna dói e meu relógio de bolso indica que já chegamos no hospital a mais de uma hora. 

Minha intenção não era burlar o hospital. No desespero de ser atendido rápido, não falei ao paramédico, no momento da aplicação dos primeiros socorros, que não possuímos plano de saúde! 

Caminho vagarosamente até a porta vai-e-vem e vejo uma maca no final do corredor com uma pessoa em cima, mas pela distância, não consigo identificar se é Alice. Existe um lençol branco em cima da pessoa impedindo a visualização. Fico preocupado e planejo chegar perto para ter certeza se minha preocupação procede. Será que deixaram Alice no corredor só porque não temos plano de saúde? – pensei. 

Fico paralisado em frente às portas, esperando o momento oportuno para entrar sorrateiramente pelo corredor e conferir minha suposição. Em cima do umbral o seguinte aviso: “Entrada Proibida – Área Restrita”. Leio e dissimulo indiferença. 

- E que ninguém me impeça de atingir esse objetivo! – pensei com coragem.