07/05/2016

#13 - Fahrenheit 451 - Autor: Ray Bradbury - A primeira página de meu livro



Livro: Fahrenheit 451 - Autor: Ray Bradbury

Página 1

Queimar era um prazer. 

Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. 

Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história. 

Na cabeça impassível, o capacete simbólico com o número 451 e, nos olhos, a chama laranja antecipando o que viria a seguir, ele acionou o acendedor e a casa saltou numa fogueira faminta que manchou de vermelho, amarelo e negro o céu do crepúsculo. 

A passos largos ele avançou em meio a um enxame de vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que ele mais desejava era levar à fornalha um marshmallow na ponta de uma vareta, enquanto os livros morriam num estertor de pombos na varanda e no gramado da casa. 

Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido pela fuligem. Montag abriu o sorriso feroz de todos os homens chamuscados e repelidos pelas chamas. Sabia que quando regressasse ao quartel dos bombeiros faria vista grossa a si mesmo no espelho, um menestrel de cara pintada com rolha queimada. 

Depois, ao ir para a cama, sentiria no escuro o sorriso inflamado ainda preso aos músculos da face. Nunca desaparecia, aquele sorriso, nunca, até onde conseguia se lembrar. 

Pendurou o capacete preto-besouro e o lustrou. Pendurou caprichosamente a jaqueta à prova de fogo; tomou uma ducha voluptuosa e, depois, assobiando, as mãos nos bolsos, atravessou o piso superior do posto dos bombeiros 

e deixou-se cair pela abertura. No último instante, quando o impacto parecia fatal, tirou as mãos dos bolsos e interrompeu a queda agarrando o mastro dourado. Deslizou até a parada sibilante, os calcanhares a dois centímetros do chão de concreto do andar de baixo. Saiu do quartel e caminhou pela rua noturna até o metrô. O trem pneumático deslizou silenciosamente por seu tubo lubrificado na terra e o lançou para fora com uma grande lufada de ar morno, na escada rolante de ladrilhos bege que subia para o subúrbio. 

Assobiando, deixou que a escada rolante o deslizasse pelo ar sereno da noite. Caminhou rumo à esquina, sem pensar em nada de especial. Antes de chegar lá, porém, reduziu o passo como se tivesse sido surpreendido por nada, como se alguém tivesse chamado seu nome. Nas últimas noites experimentara as sensações mais incertas ali na calçada, ao dobrar a esquina, andando à luz das estrelas a caminho de casa. Uma impressão de que, um momento antes de fazer a volta, houvesse alguém ali. O ar parecia carregado de uma calma especial, como se alguém o esperasse, quieto e, um segundo antes de dobrar a esquina, simplesmente se convertesse em sombra e fosse por ele atravessado. Talvez seu nariz tivesse detectado um frágil perfume, talvez a pele do dorso de suas mãos, ou a de seu rosto, se aquecesse nesse exato local em que uma pessoa parada poderia, por um instante, elevar em dez graus a temperatura circundante. 

Não havia como compreender aquilo. Cada vez que se virava para trás, via apenas a calçada branca e vazia, estreitando-se. E numa dessas noites teve a impressão de ver algo que desapareceu rapidamente do outro lado do gramado, antes que ele pudesse focalizar os olhos ou dizer alguma coisa. Mas agora, nesta noite, ele reduziu o passo quase até parar. Sua percepção íntima, antecipando-se ao seu corpo na virada da esquina, ouvira o mais frágil sussurro. Respiração? Ou simplesmente a atmosfera estaria sendo comprimida por alguém, ali parado, muito quieto, à espera? Montag dobrou a esquina. As folhas do outono voavam pela calçada enluarada e faziam com que a garota que ali caminhava parecesse presa num piso deslizante, deixando que o movimento do vento e das folhas a impelisse para frente. Sua cabeça pendia para o chão a fim de observar os sapatos agitarem as folhas em volta. Seu rosto era esguio e branco como leite e havia nele uma espécie de fome delicada que em tudo se detinha com infatigável curiosidade. Era uma expressão quase de contida surpresa; os olhos escuros estavam tão fixos no mundo que nenhum movimento lhes escapava. O vestido era branco e ciciava. 

Montag quase podia ouvir o movimento das mãos da garota ao caminhar e o som, agora infinitamente frágil, da branca agitação de seu rosto quando se voltou, descobrindo que estava a um segundo de colidir com um homem parado no meio da calçada. As copas das árvores farfalharam ruidosamente, soltando sua chuva seca. 

... 

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