08/04/2017

Janer Cristaldo sobre Nietzsche



Sobre Nietzsche, outro autor que não se encontra na universidade, vou reproduzir texto que escrevi há uma década. Meus professores de Filosofia não gostavam do alemão, ele demolia todas as filosofias. Cá e lá ele era citado, afinal não podia ser ignorado. Mas nunca tive professor que recomendasse Nietzsche em suas bibliografias. Para mim, foi autor decisivo em minha vida. É leitura, penso, que deve ser feita quando se é jovem. Não sei se adianta ler Nietzsche aos trinta anos. Também não sei se seria útil a um jovem contemporâneo. Em minha época de universitário, pensamento se demolia com pensamento. Hoje, os meios de comunicação se encarregam deste trabalho de demolição.

Aconteceu nos dias de Porto Alegre. Um colega um tanto inquieto, cujos interesses oscilavam do pugilismo às matemáticas, me abordou com o olhar desvairado. Empunhava um livro com verve. "Tens de ler este alemão. Urgente". Era o Ecce Homo - Como se chega a ser o que se é, de Nietzsche. Seriam umas dez da manhã. Acostumados àqueles humores repentinos, pensei dar uma vista de olhos no livro, para que meu instável amigo não mais me chateasse. Já no índice, comecei a irritar-me. Primeiro capítulo: porque sou tão sábio. Segundo: porque sou tão sagaz. Terceiro: porque escrevo bons livros. O último capítulo, uma pergunta: porque sou uma fatalidade?

É o tipo de introdução que convida o leitor desavisado a jogar o livro longe. Mas uma música qualquer, uma cantata de eremita que volta do deserto, emanava das páginas sublinhadas com fúria naquele livro ensebado. Deixei-me levar pela música, fui entrando na atmosfera rarefeita do pensador. "Ouvi-me!" - alerta Nietzsche já na introdução - "eu sou alguém e, sobretudo, não me confundais com qualquer outro".

Mergulhei com fúria na leitura. Sentia estar perto de algo vital. Este livro, no qual o alemão furibundo se apresenta aos pósteros com as palavras com que Pilatos entrega o Cristo às turbas - Eis o Homem - foi escrito pouco antes de seu mergulho na loucura. É certamente o pensador que com mais energia lutou contra a hipocrisia do cristianismo e contra o próprio Cristo, a ponto de assinar-se, em seus dias de insanidade, como o Anti-Cristo. Ao falar da morte dos deuses pagãos, completava: sim, os deuses gregos morreram. Morreram de rir, ao saber que no Ocidente havia um que se pretendia único.

A manhã se foi, entrei meio-dia adentro, esqueci de almoçar e, lá pelas três da tarde, tive de engolir esta: Não me são desconhecidas as minhas qualidades de escritor; em determinados casos compreendi como se corrompia o gosto com o manuseio de minha obra. Acaba-se, simplesmente, por não suportar mais a leitura de outros livros, pelo menos os filósofos. (...) Disseram-me que é impossível interromper a leitura dos meus livros, porque eu perturbo até o repouso noturno. Não existem livros mais soberbos e, ao mesmo tempo tão refinados quanto os meus.

Vontade de jogar fora o livro. Mas já era tarde demais para voltar atrás. Procurei imediatamente as obras completas do autor. Primeira escala, Assim falava Zaratustra: "Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres". Zaratustra é o eremita que, ao voltar da montanha, encontra um santo em uma cabana no bosque, que entoa cânticos para louvar a Deus. O eremita se espanta: "Será possível que este santo ancião ainda não tivesse ouvido no seu bosque que Deus já morreu?"

Para um jovem sufocado pela propaganda de Roma, sorver Nietzsche era como beber água límpida, não poluída pelos construtores de mitos. Passei inclusive a estudar alemão, para degustar no original seus ditirambos. Mas a vida tem outros projetos para os que nela entram, e acabei aprendendo sueco. De qualquer forma, Nietzsche foi decisivo para minha libertação. Títulos como A Origem da TragédiaO Crepúsculo dos ÍdolosHumano, Demasiado HumanoAlém do Bem e do MalAnti-Cristo já antecipam o que este doublé de filósofo e poeta se propõe.

Postumamente, publicou-se uma versão apócrifa de Vontade de Potência, devidamente adulterada por sua irmã, Lisbeth Förster-Nietzsche - que morreu refugiada no Paraguai - para atender aos interesses do nazismo. Durante boa parte deste século, Nietzsche, inimigo jurado de filosofias coletivistas, foi associado ao nazismo. Principalmente pelos marxistas, que intuíam em seu pensamento uma condenação avant la lettre dos regimes socialistas. Esta associação é desonesta.

Basta lermos as invectivas de Nietzsche aos alemães e à cultura alemã em Ecce Homo, para descartarmos este absurdo: "Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhague, em Paris, em Nova York, por toda parte estou descoberto: não o estou somente no país mais ordinário da Europa, a Alemanha". Ou ainda: "Por onde quer que passe, a Alemanha destrói a cultura". Cabe lembrar que Nietzsche nasceu em Röcken, Prússia.

Este autor, dificilmente você encontrará nos currículos universitários. Seu pensamento demole sistemas, e a academia adora o pensamento sistematizado. Tampouco serve para criar qualquer espécie de culto ou religião: Zaratustra não quer discípulos. Nietzsche fala a homens livres, capazes de respirar a atmosfera das grandes alturas, que não temem a intempérie metafísica e dispensam muletas espirituais.

Há cento e nove anos, morria Nietzsche. Nestes dias em que uma nova inquisição, o pensamento politicamente correto, quer impor sua vontade, o Anti-Cristo certamente lhe renderia uma carrada de processos. Este livro, que escandalizou - e ainda escandaliza - a Europa, é uma contundente catilinária contra o Cristo e seus discípulos e um entusiasta elogio de César, Nero, César Borgia, Napoleão e Goethe. Nas páginas finais, lemos um projeto de Lei contra o Cristianismo, dada no dia da Salvação do ano Um (a 30 de setembro de 1888, pelo falso calendário).

E por aí vai. Leia Nietzsche. É salutar. Mas atenção: de nada adianta lê-lo aos cinqüenta. Aos cinqüenta, ou você há muito se libertou... ou está definitivamente perdido.

Janer Cristaldo

Nota deste autor do Blog Banal sobre a última frase: Será que estou perdido? Se estou, agora é tarde. 

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