01/06/2015

Tudo é banalidade


A luz estava acesa e os meus olhos permaneciam fechados.
Era uma manhã fria do mês de maio e eu estava aquecido entre panos.
Mal conseguia mexer os braços e o ambiente era silencioso.
Abri os olhos lentamente e vi uma luz brilhante.
Um rosto feminino me olhou com ternura...

Tudo começou assim.
Tudo na vida tem um começo.
O meu foi dessa forma, eu acho, não me lembro.
A maioria dos eventos em nossa vida segue um roteiro automático e mal notamos.
Não escolhi meu nome, aliás ninguém escolhe.
Mas isso não tem importância.
Nessa fase não tomamos nenhuma decisão.
Alguém cuida da gente.
Não poderia ser diferente.
Somos muito frágeis.
Chega um tempo na vida que precisamos decidir tudo.
Andar com os próprios pés, como diz o ditado.
Mas isso leva um certo tempo.
Nessa época não temos opção.
À vezes lá na frente continuamos sem opção...
Apenas seguimos a programação biológica.
Nasci sem dentes. Normalmente se nasce sem dentes.
E essa informação é irrelevante.
Aliás, quase tudo aqui escrito não tem importância.
Escrevo apenas por prazer.
Do jeito que surge na mente.
Tudo bruto.
Mas por que estou escrevendo isso?
Ninguém tem interesse nisso.
Eu sei disso, mas talvez sirva de curiosidade para meus filhos ou netos!
Meu pai não deixou nada escrito.
Nem meu avô.
Gostaria de saber o que eles pensavam.
Via de regra, o interesse pelas pessoas é proporcional ao seu "poder".
Não tenho poderes, sou banal.
Mas existem exceções. Ainda bem.
Vou escrever sem me preocupar...
Deixarei meus dedos teclarem minhas bobagens até o ponto final.
Sem censura, sem regras.
Aqui não preciso seguir normas.
A vida já tem normas demais.

Como eu dizia, naquela época era dependente de tudo.
E foi assim por muito tempo.
Mamava todos os dias.
De segunda a segunda, inclusive Natal.
Não sentia falta de um cardápio variado.
Nem sabia o que era cardápio.
Nesse tempo não ficava esperando o final de semana.
Nem o feriado. Nem as férias.
Minha vida era automática.
Mas isso eu não sabia.
Vida de cachorro é assim todo dia.
E eles são felizes.
Não existe calendário.
Aliás a vida de todo mundo é automática.
Dormia, acordava, mamava, sujava a fralda e dormia.
No outro dia, acordava, mamava, sujava a fralda e dormia de novo.
Mamãe limpava minha fralda.
Minha vida era monótona.
Mas eu não sabia o que era monotonia.
Tudo ia bem. Eu acho.
Eu era ignorante.
Ou melhor, menos ignorante.
Ser ignorante tem as suas vantagens.
Vivia todos os dias com o mesmo roteiro.
E foi assim por um bom tempo.
Um dia mamãe me deu papinha.
Acabei me acostumando.
Acho que nem notei. Era o que tinha.
Não reclamava. Reclamar de que?
Meus dentes cresceram.
Comia com colher.
Comia de tudo.
O tempo passou mais um pouco.
Estava na escola.
Tinha um monte de gente que eu não conhecia.
Aprendi escrever e ler. 
Conheci gente que chamamos de colega.
Cresci mais um pouco.
Cheguei aos dezesseis anos.
Nesse tempo era chamado de jovem.
Entrei para estudar no SENAI.
Carteira assinada e salário mínimo.
Comecei exatamente nesse prédio aí da foto..



Um dia os professores do SENAI levaram os alunos para conhecerem uma indústria.
Era preciso integrar e ter a  visão do futuro!
Foi escolhida a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) em Volta Redonda.
A maior do Brasil. A maior da América Latina.
Uma das maiores do mundo. Meu irmão trabalha lá.
O meu primeiro contato com uma indústria não me agradou.
Estava acostumado com a limpeza e organização do SENAI.
Achava que indústria fosse igual SENAI.
Confesso que foi um choque para um menino de dezesseis anos na década de 80.


Um frangote sem experiência em contato com o fogo. O vermelho. O ferro líquido. As chamas.
Os operários com roupas grossas, máscaras, luvas, botas e capacetes.
Apenas os olhos para fora. Era um olhar triste. Muito triste.
Aquele sujeito seria eu no futuro?
Uma burca masculina.
Muito calor. Coqueria, ferro gusa e muito suor.
A imagem do inferno, se eu acreditasse nisso.
Foi marcante.
O tiro saiu pela culatra.
Quando me formasse não queria ir para lá. Por sorte não fui.
E a vida continuou.
Surge estágio numa pequena oficina de usinagem perto da minha casa.
Um caos. Um lixo.
Oficina do José Laércio. Torno velho.
Fresadora antiga. Furadeira. Solda. Cavaco.
Sem EPI. Sem uniforme. Sem dinheiro e SEM FUTURO!
O banheiro servia de refeitório.
Um amigo de Barra Mansa chamado Vanderlei, que também trabalhava nesse local, vivia repetindo: "nada é tão ruim que não possa piorar".
Nessa oficina eu precisava levar café na garrafa. Gostava da hora extra só para comer marmitex à noite. Nem acredito nesse absurdo. 
Comprava sabão-areia com dinheiro minguado que recebia.
A limpeza da graxa das mãos era por conta de cada um. Que absurdo.
O tempo foi passando e tinha muita vontade de melhorar. Quem não quer?
Entrei no Curso técnico. Colégio Verbo Divino.
Professor Japonês. Koiti Terazaki.
Formei-me em desenho técnico e usava lapiseira Pentel. Que orgulho!
Um grande salto. Desenhei por uns tempos e isso me agradava.



Comprei uma prancheta, caneta nanquim e papel vegetal.
Apendi a manusear o tecnígrafo na escola, mas na minha casa eu usava régua "T". Depois a paralela.
Hoje quase ninguém sabe o que é isso.
Desenhava com gosto.
Cobria cada linha com tinta nanquim.
Era uma terapia.
Virava a noite desenhando e tomando café.
Esse curso de desenho técnico me colocou na Nestlé.
O projetista se chamava José Geraldo Koenigkam.
O desenho (sépia) naquela época era colocado numa caixa que continha amônia para revelar as linhas. A sala cheirava amônia.
José Geraldo me entregou uma engrenagem para desenhar.
Mas a vaga era para desenhista elétrico.
Tinha 19 anos e queria a vaga.
Contratado como terceiro por 3 meses em abril de 1985.
Na sala trabalhavam o Sr. Nascimento, o Vallejo e o JGK.
São meus amigos até hoje. Guardo boas lembranças.
Eu era um jovem pacato e tímido no alto de meus poucos 19 anos.
Tinha vergonha até de sorrir.
Naquela época o jovem respeitava quem tinha mais idade.
Dia desses uma aprendiz de 1,50 m me encarou com olhar desafiante que até achei graça. Mal saiu das fraldas, mas o nariz já está empinado. Precisa tomar muito mingau ainda.
Neste ano de 2015 completei 30 anos na mesma empresa privada e sem estabilidade. Uma espécie em extinção.



Na prancheta eu usava "gilete" para apagar as linhas no vegetal.
Paciência valia ouro. O tempo era mais lento. Mais gostoso.
Hoje é tudo rápido. Nervoso. Impaciente. Impiedoso. Tenso. Veloz.
A chapa é quente, como dizem em Barra Mansa.
Precisamos correr. O tempo não para.
Os olhos sempre arregalados. A cabeça doendo. Pressão. O sono perdido. A vida indo embora.
Sucesso, poder e status.
Geração “Y”.
No meu tempo não existia geração “Y”.
Nome moderninho para diferenciar quem veio de outra época e construiu o presente...
Geração “Y” é o "baralho"!
Vamos dar bom dia ao galo e trabalhar primeiro!
Idioma é fundamental, mas não movimenta a máquina.
É preciso suor, honestidade e dedicação.
Hoje qualquer metido a besta quer colher sem plantar.
É muita corda para pouco nó.
É muito juiz para pouco jogador.
Querem comer o abacaxi sem descascar.
A vida é dura para todos, dos Alfas aos Épsilons, como no romance de Aldous Huxley.


O pato é caro mas todos querem de graça.
A estrada de quem não tem berço tem mais pedra. Mais poeira. Deserta.
Dizem que você tem que ser alguém. Mesmo que não queira.
Ter sucesso é ser alguém.
Então a maioria não é ninguém?
Mas o que é ser alguém? Ser alguém para quê?
Eu não sou ninguém e já me acostumei.
O tempo passou.
A boiada foi seguindo.
Entrei na faculdade.
A escolha foi pela Engenharia Mecânica.
Não fiz teste de aptidão. Fui como um boi que segue a boiada.
Setenta quilômetros de casa.
Ida e volta. Cento e quarenta quilômetros.
Chegava em casa meia noite.
Caminhava pelo escuro. O mundo dormia.
Muita fome e silêncio,
Devia ter feito outro curso.
Filosofia, História, Astronomia? Gosto de explorar o universo.
Talvez cientista...
Gosto de investigar.
Investigando descobri um pouco sobre o mundo.
E os livros foram ótimos professores.
Descobri muita coisa por conta própria.
Aprendi a sobreviver na selva e sem pai.
Logo abaixo a foto da Universidade Severino Sombra em Vassouras-RJ.
Neste local, conheci o famoso e velho Severino Sombra em pessoa.
Era um simpático senhor de cabeça branca. Entrou na aula inaugural, contou sua história e seu sonho de construir sua "Coimbra" brasileira. Acho que ele exagerou um pouco!



Conheci também Granville, cálculo de diferencial, integral, chuva, acidente e morte na estrada para Vassouras.
Vinho às Sextas-feiras no ônibus fretado.
Um pouco de alegria!
O motorista era um gordinho chamado de Kami. Na verdade, era Kamikaze.
Trabalhava, viajava, estudava, viajava, dormia e trabalhava.
Vegetava. Sem dinheiro. Dormia tarde e acordava cedo. Final de semana. Estudava o dia inteiro e tinha pouco dinheiro.
Pausava somente à noite para namorar.
Alegria de novo! Ninguém é de ferro.
Vassouras por quatro anos.
Só faltava um ano. Pausa para casar. Depois o retorno.
Fui vencido.
E o tempo passou.
Você tem que ser alguém. Todo mundo fala assim.
E seu eu não for alguém? E se o custo for muito alto? E se eu for infeliz?
Isso não importa.
Temos que lutar para ser independentes.
Quem depende muito sofre mais.
O mundo é assim.
A busca constante por algo...
Nem sempre se se alcança...ou se alcança e não se realiza.
A vida é automática. Muito dura também. Não há como escapar.
A vida às vezes te empurra para um túnel. Sem saída.
Muito escuro, tenso, barulhento e afunilado.
Você tem que se virar e sair de lá.
Reclamar não adianta.
Ninguém quer viver no abismo.
Viver bem não depende de ser "alguém".
Viver bem é um estado de espírito.
Tem que aprender a ler o mundo e traçar o seu caminho.
Enxergar o melhor e filtrar o que não se pode mudar.
Acostumar com o defeito dos outros e seguir o seu trajeto.
Deixar o gado pastar e admirar a paisagem.
Ignorar os urubus e contemplar o céu azul. Ler livros que desenvolva a autonomia e o pensamento crítico.
Esquecer de tentar mudar o outro e seguir o próprio caminho.
Mesmo que sozinho.
Às vezes bancar o ignorante gera felicidade.
Alguns lemas banais que sigo: Jamais entregar o controle da vida à terceiros.
Nem a padre, pastor, rabino, xamã ou qualquer idealista "bem-intencionado" em te dominar. Primeiro te oferecem palavras e sorrisos, para depois te "formatar", julgar e dominar. Sua vida, seus gostos, sua música, seu passeio, sua mente.
Minha vida cuido eu. Aprender a decidir é ter maturidade e independência.
Não crio muitas expectativas. Poucos se preocupam realmente com a gente.Terceirizar a vida e pensamentos é sinal de fraqueza ou alienação.
Vivo de acordo com minha consciência e assumo os erros.
Valorizo a lealdade e quando entro na chuva, que se dane a água.
Valorizo também as "pequenas" coisas banais da vida. Isso dá muito prazer.
Prezo pessoas humildes. Prezo gente inteligente. Valorizo quem não esquece suas raízes. Gosto de gente honesta. Não gosto de arrogância e abomino a soberba.
Prezo a amizade sem interesse, um encontro em volta da panela, do ritual da churrasqueira, ouvir histórias do passado. Uma cama macia. Um livro que faz pensar. O mar. O céu azul. O cheiro do capim. A solidão fora do bando. O sol que aquece nos dias de inverno. Uma caipirinha de vez em quando. A beleza da juventude. O sorriso que contagia. Um abraço apertado. Uma música com os olhos fechados.
É possível ser feliz com simplicidade.
Ter prazer enquanto os pássaros dormem.
Pensar sobre os mistérios da vida e se encantar com a natureza.
Buscar momentos felizes antes que seja tarde...mesmo que breves.
Antes que tudo se apague.
É muito bom lembrar de chegar ao final da vida e ter histórias para contar e sentir prazer quando lembrar.
E chegar à conclusão que, apesar de tudo e de todos, valeu a pena!
Uma vida plena, apenas uma, para mim é o suficiente. Se é que me entendem.
  


Até mais!



Viagens escritas de Alex Gil Rodrigues em 02/06/2015. O título "Tudo é banalidade" foi colocado despretensiosamente em associação ao "Tudo é Vaidade" de Eclesiastes, porém sem relação com o conteúdo. Aliás considero Eclesiastes o melhor capítulo escrito na Bíblia, pela sua realidade e humanidade.

2 comentários: